Tempestividade de recurso e momento de comprovação (Transcrições)
HC 101132 ED/MA*
REDATOR PARA O ACÓRDÃO: Min. Luiz Fux
Ementa: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO INTERPOSTO ANTES DA PUBLICAÇÃO DO ACÓRDÃO. CONHECIMENTO. INSTRUMENTALISMO PROCESSUAL. PRECLUSÃO QUE NÃO PODE PREJUDICAR A PARTE QUE CONTRIBUI PARA A CELERIDADE DO PROCESSO. BOA-FÉ EXIGIDA DO ESTADO-JUIZ. DOUTRINA. RECENTE JURISPRUDÊNCIA DO PLENÁRIO. MÉRITO. ALEGAÇÃO DE OMISSÃO E CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA. RECURSO CONHECIDO E REJEITADO.
1. A doutrina moderna ressalta o advento da fase instrumentalista do Direito Processual, ante a necessidade de interpretar os seus institutos sempre do modo mais favorável ao acesso à justiça (art. 5º, XXXV, CRFB) e à efetividade dos direitos materiais (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In: Revista de Processo, São Paulo: RT, n.º 137, p. 7-31, 2006; DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010).
2. A forma, se imposta rigidamente, sem dúvidas conduz ao perigo do arbítrio das leis, nos moldes do velho brocardo dura lex, sed lex (BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Simplificação e adaptabilidade no anteprojeto do novo CPC brasileiro. In : O Novo Processo Civil Brasileiro Direito em Expectativa. Org. Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 76).
3. As preclusões se destinam a permitir o regular e célere desenvolvimento do feito, por isso que não é possível penalizar a parte que age de boa-fé e contribui para o progresso da marcha processual com o não conhecimento do recurso, arriscando conferir o direito à parte que não faz jus em razão de um purismo formal injustificado.
4. O formalismo desmesurado ignora a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz, bem como se afasta da visão neoconstitucionalista do direito, cuja teoria proscreve o legicentrismo e o formalismo interpretativo na análise do sistema jurídico, desenvolvendo mecanismos para a efetividade dos princípios constitucionais que abarcam os valores mais caros à nossa sociedade (COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Trad. Miguel Carbonell. In: Isonomía. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, nº 16, 2002).
5. O Supremo Tribunal Federal, recentemente, sob o influxo do instrumentalismo, modificou a sua jurisprudência para permitir a comprovação posterior de tempestividade do Recurso Extraordinário, quando reconhecida a sua extemporaneidade em virtude de feriados locais ou de suspensão de expediente forense no Tribunal a quo (RE nº 626.358-AgR/MG, rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julg. 22/03/2012).
6. In casu : (i) os embargos de declaração foram opostos, mediante fac-símile, em 13/06/2011, sendo que o acórdão recorrido somente veio a ser publicado em 01/07/2011; (ii) o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime do art. 12 da Lei nº 6.368/79, em razão do alegado comércio de 2.110 g (dois mil cento e dez gramas) de cocaína; (iii) no acórdão embargado, a Turma reconheceu a legalidade do decreto prisional expedido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão em face do paciente, para assegurar a aplicação da lei penal, em razão de se tratar de réu evadido do distrito da culpa, e para garantia da ordem pública; (iv) alega o embargante que houve omissão, porquanto não teria sido analisado o excesso de prazo para a instrução processual, assim como contradição, por não ter sido considerado que à época dos fatos não estavam em vigor a Lei nº 11.343/06 e a Lei nº 11.464/07.
7. O recurso merece conhecimento, na medida em que a parte, diligente, opôs os embargos de declaração mesmo antes da publicação do acórdão, contribuindo para a celeridade processual.
8. No mérito, os embargos devem ser rejeitados, pois o excesso de prazo não foi alegado na exordial nem apreciado pelo Superior Tribunal de Justiça, além do que a Lei nº 11.343/06 e a Lei nº 11.464/07 em nada interferem no julgamento, visto que a prisão foi decretada com base nos requisitos do art. 312 do CPP identificados concretamente, e não com base na vedação abstrata à liberdade provisória, prevista no art. 44 da Lei de Drogas de 2006.
9. Embargos de declaração conhecidos e rejeitados.
Relatório: Trata-se de embargos de declaração opostos contra decisão desta Primeira Turma, que indeferiu ordem de habeas corpus na sessão de julgamento do dia 31/5/2011, vencido o Ministro Marco Aurélio, relator originário.
Irresignada, a parte impetrante ajuizou embargos de declaração mediante fax, em 13/6/2011, sendo a petição original protocolada em 16/6/2011, na qual afirma que houve omissão, pelo órgão julgador, quanto à alegação de excesso de prazo na instrução criminal.
O acórdão recorrido somente veio a ser publicado em 1º/7/2011, tendo a ementa o seguinte teor (fls. 475):
PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. FUGA DO DISTRITO DA CULPA. MODUS OPERANDI. GRANDE QUANTIDADE E NATUREZA DA SUBSTÂNCIA. GRAVIDADE CONCRETA. PRISÃO PREVENTIVA PARA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA, PARA PRESERVAÇÃO DA INSTRUÇÃO CRIMINAL E PARA ASSEGURAR A APLICAÇÃO DA LEI PENAL. AUSÊNCIA DE ILEGALIDADE. PRECEDENTES. ORDEM DENEGADA.
1. A fuga do distrito da culpa é dado conducente à decretação da prisão preventiva para garantir a instrução criminal e assegurar a aplicação da lei penal. Precedentes : HC 101356/RJ, rel. Min. Ayres Britto, 2ª Turma, DJ 2-3-2011; HC 101934/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ de 14/9/2010; HC 95.159/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 12.06.2009; HC 102021/PA, rel. Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ de 24/9/2010; HC 98145/RJ, Rel. Min. Cármen Lúcia, Pleno, DJ de 25/6/2010; HC 101309/PE, Rel. Min. Ayres Britto, 1ª Turma, DJ de 7/5/2010.
2. A gravidade in concreto do delito ante o modus operandi empregado, enseja também a decretação da medida para garantia da ordem pública por força da expressiva periculosidade do agente.
3. In casu, o paciente sofre a imputação do tráfico de 2.110 gramas de cocaína, dado concreto extraído dos autos que, mercê da quantidade e da natureza da substância, permite concluir pela periculosidade social do paciente.
4. Parecer do MPF pela denegação da ordem.
5. Ordem DENEGADA.
6. Agravo regimental desprovido.
Contra essa decisão, opôs o impetrante Embargos de Declaração, alegando existir omissão no julgado, em virtude da ausência de análise, pela Corte, do argumento relativo ao excesso de prazo para a instrução processual. Afirma o embargante, ainda, que há contradição no aresto, na medida em que não foi considerado que à época dos fatos não estavam em vigor a Lei nº 11.343/06 e a Lei nº 11.464/07. Pugna pelo afastamento da vedação abstrata à liberdade provisória prevista no art. 44 da Lei de Drogas de 2006.
É o relatório.
Voto: Senhor Presidente, há uma preliminar a ser vencida, antes que se adentre o mérito recursal.
Os presentes embargos de declaração foram opostos, mediante fac-símile, em 13/06/2011; a petição original foi protocolada em 16/06/2011. O acórdão recorrido somente veio a ser publicado em 01/07/2011.
Não ignoro que a jurisprudência desta Turma é no sentido de que o recurso ajuizado antes da publicação do acórdão de julgamento é extemporâneo, porquanto se entende que a impugnação é prematura. Assim, v. g. : HC 85.314/SP, Rel. Min. Eros Grau, Primeira Turma, Julg. em 14/03/2006.
Essa orientação, no entanto, merece uma melhor reflexão da Corte. Uma tal visão do processo, que eleva filigranas estéreis a um patamar de importância maior que o próprio direito material, está vinculada à denominada fase científica do Direito Processual, na qual, ante a necessidade de afirmação da nova ciência que surgia no final do séc. XIX, os operadores do direito se apegavam demasiadamente a querelas meramente acadêmicas.
Pela pena de notáveis juristas modernos, dentre os quais destaco, na doutrina nacional, os professores Cândido Dinamarco, José Roberto dos Santos Bedaque e Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, a doutrina processual, a pouco e pouco, vem adequando os institutos deste ramo do Direito para que cumpram a sua verdadeira função: a de conferir efetividade aos direitos materiais.
A fase instrumentalista do Direito Processual deriva da necessidade de legitimação do Judiciário. Com efeito, o descrédito social gerado em razão de decisões que se furtam à resolução do mérito por apego exagerado a questiúnculas procedimentais, sem qualquer fundamento razoável, gera uma crise de efetividade dos direitos e põe em xeque, em última análise, a sobrevivência dos Poderes instituídos. A persistir a orientação formalista, veremos ressuscitado o regime romano das legis actiones , do purismo formal excessivo e absoluto desse período data a conhecida passagem das Institutas de Gaio (IV/11), em que relata a perda de uma causa em virtude de a parte ter utilizado o termo vide no lugar de árvore, que era o correto. Em artigo publicado em obra recente que coordenei, Bruno Bodart vaticina que [a] forma, se imposta rigidamente, sem dúvidas conduz ao perigo do arbítrio das leis, nos moldes do velho brocardo dura lex, sed lex (BODART, Bruno Vinícius Da Rós. Simplificação e adaptabilidade no anteprojeto do novo CPC brasileiro. In : O Novo Processo Civil Brasileiro Direito em Expectativa. Org. Luiz Fux. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 76).
Carlos Alberto Alvaro de Oliveira observa que o formalismo excessivo faz com que o seu poder organizador, ordenador e disciplinador aniquile o próprio direito ou determine um retardamento irrazoável na solução do litígio. Segundo anota o autor, as formas processuais cogentes não devem ser consideradas formas eficaciais (Wirkform), mas formas finalísticas (Zweckform), subordinadas de modo instrumental às finalidades processuais. Se a finalidade da prescrição foi atingida na sua essência, sem prejuízo a interesses dignos de proteção da contraparte, o defeito de forma não deve prejudicar a parte, mesmo em se tratando de prescrição de natureza cogente, pois, por razões de equidade (justiça do caso concreto, segundo Radbruch), a essência deve sobrepujar a forma (OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de. O formalismo-valorativo no confronto com o formalismo excessivo. In : Revista de Processo, São Paulo: RT, n.º 137, p. 7-31, 2006).
A finalidade da publicação do acórdão de julgamento é dar ciência à parte do teor da decisão, de modo que a interposição anterior do recurso denota que o referido propósito foi atingido por outros meios. Penalizar a parte diligente, que contribuiu para a celeridade do processo, é contrariar a própria razão de ser dos prazos processuais e das preclusões: evitar que o processo se transforme em um retrocesso, sujeito a delongas desnecessárias.
Neste sentido, a lição de José Roberto dos Santos Bedaque, in verbis : se for possível verificar que o reconhecimento da preclusão em determinado caso concreto, além de não favorecer a celeridade do processo, irá proporcionar tutela jurisdicional a quem não tem direito a ela, deverá o juiz afastá-la (Efetividade do Processo e Técnica Processual. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 130).
O formalismo desmesurado ignora, ainda, a boa-fé processual que se exige de todos os sujeitos do processo, inclusive, e com maior razão, do Estado-Juiz. Nas palavras de Dinamarco, a supervalorização do procedimento, à moda tradicional e sem destaques para a relação jurídica processual e para o contraditório, constitui postura metodológica favorável a essa cegueira ética que não condiz com as fecundas descobertas da ciência processual nas últimas décadas (DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 267).
A Constituição de 1988 foi o estopim de um marco científico, consistente na difusão da doutrina neoconstitucionalista no Brasil, cuja metodologia assume a existência de uma conexão necessária entre direito e moral. No plano teórico, afasta-se o estatalismo, o legicentrismo e o formalismo interpretativo na análise do sistema jurídico, e desenvolvem-se mecanismos para a efetividade dos princípios constitucionais que abarcam os valores mais caros à nossa sociedade (COMANDUCCI, Paolo. Formas de (neo)constitucionalismo: un análisis metateórico. Trad. Miguel Carbonell. In : Isonomía. Revista de Teoría y Filosofía del Derecho, nº 16, 2002). Impossível, portanto, interpretar as normas processuais de modo desfavorável à consecução do acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da Constituição) e desconectada da necessidade de conferir aplicabilidade às normas de direito material.
O Supremo Tribunal Federal, recentemente, sob o influxo dessas novas ideias, modificou a sua jurisprudência para permitir a comprovação posterior de tempestividade do Recurso Extraordinário, quando reconhecida a sua extemporaneidade em virtude de feriados locais ou de suspensão de expediente forense no Tribunal a quo (RE nº 626.358-AgR/MG, rel. Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julg. 22/03/2012).
Sabe-se que o direito não socorre aos que dormem; porém, deve acudir aqueles que estão bem acordados. É por isso que reconheço a tempestividade do recurso, à luz da visão instrumentalista do processo.
No mérito, entretanto, não assiste razão ao embargante, porquanto inexistente qualquer omissão ou contradição no acórdão impugnado.
Apenas para rememorar os fatos, o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime do art. 12 da Lei nº 6.368/79, em razão do alegado comércio de 2.110 g (dois mil cento e dez gramas) de cocaína. O Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão expediu decreto prisional em face do paciente, para assegurar a aplicação da lei penal, sendo réu evadido do distrito da culpa, e para garantia da ordem pública.
Ao contrário do que sustenta o embargante, não houve nenhuma contradição relativa à circunstância de que à época dos fatos não estavam em vigor a Lei nº 11.343/06 e a Lei nº 11.464/07. A liberdade provisória não foi negada em razão da vedação abstrata prevista no art. 44 da Lei de Drogas de 2006. O decreto prisional se lastreou nos requisitos previstos no art. 312 do CPP, com fundamentação concreta e específica, tal como reconhecido por esta Turma. Por sua vez, a Lei nº 11.464/07, que alterou a Lei de Crimes Hediondos, também não guarda nenhuma conexão com o julgamento embargado.
A omissão atinente ao alegado excesso de prazo inexistiu. Isto porque em nenhum momento o impetrante veiculou semelhante alegação na exordial. Ademais, o Superior Tribunal de Justiça não apreciou a questão, motivo pelo qual configuraria supressão de instância a análise da matéria pelo Supremo.
Ex positis, conheço dos embargos de declaração, mas rejeito-os.